12 de julho de 2011

Impressões margaridianas

Vejam que interessante a avaliação da aula de DONA Margarida pelo aluno Bruno!
É por isto que os artistas prosseguem na batalha diária do fazer teatral.
Salve Jorge!
Michelle Ferreira

Universidade Federal de Minas Gerais


Escola de Belas Artes - Teatro

Teorias do Texto Dramatúrgico e Espetacular

Professor Marcos Antônio Alexandre

Aluno Bruno David Adamy Guimarães

Junho/2011





ANÁLISE DO ESPETÁCULO

“APARECEU A MARGARIDA”





O Espetáculo “Apareceu a Margarida” de autoria Roberto Athayde, apresentado com adaptações pelo grupo “Flores de Jorge” sob a direção de Camilo Lélis, nos leva de volta às salas de aula. Mas não nos problematiza apenas a insuficiente educação brasileira desde muitos anos e sim, nos apresenta, de forma bem construída na personagem-título uma série de questionamentos da história dos governos do Brasil e da formação do nosso povo como consumidores ou, até mesmo, como mero espectadores e não cidadãos.

Apesar do texto ter sido escrito, à sua época, como uma alegoria da Ditadura Militar do Brasil, a remontagem feita pelo grupo “Flores de Jorge” não se torna um texto datado, muito pelo contrário, nos traz críticas a um Brasil contemporâneo sem deixar de lado as raízes históricas, políticas e sociais do nosso povo.

Neste aspecto, uma série de questionamentos é abordada. Mas esta abordagem não compõe a cena como adereço apenas e muito menos figura como uma questão meramente risível. De forma muito bem elaborada estas questões chegam ao público e permite, aos que quiserem e puderem, questionar a atual situação do país, fruto de uma série de outros acontecimentos anteriores à nossa época.

Temos diante de nós uma comédia, mas nem por isso vemos na apresentação a busca pelo riso fácil. De forma bem elaborada a apresentação não abusa das cenas de humor e por toda a peça temos cenas muitas bem dosadas, principalmente as mais erotizadas que não figuram apenas como apelação.

Mesmo vendo em alguns momentos da peça palavras de baixo calão e gestos obscenos, tais aspectos não nos chegam de forma gratuita, mas sim como mais um caractere na construção de um sentido maior e com uma finalidade também maior do que o provocar na plateia o riso ou a repulsa.

Ao entrarmos na sala de espetáculo temos o cenário à mostra onde podemos ver: Um quadro negro ao centro. Ao lado esquerdo temos uma cadeira e uma mesa para dona Margarida onde, nesta última, podemos ver “porcamente” desenhado um mapa do Brasil. No lado direito do palco, temos um lixo com uma bandeira do Brasil dentro. E por todo palco muito pó de giz.

Este cenário elaborado por Thiago Almeida não escapa à representação figurativa de uma sala de aula, mas traz jogo e agilidade ao desenrolar do espetáculo e às ações de dona Margarida. Alguns exemplos que podemos citar são, dentre outros: A transformação de uma régua sob a mesa em cruz, e esta cruz em arma. E o recipiente que serve de vaso para uma flor se torna uma garrafa de bebida. Em contra ponto à representação ilustrativa de uma escola, esta desconstrução e ressignificação do cenário é feita de maneira a enriquecer a encenação e não polui a cena, nem mesmo prejudica o desenvolvimento do espetáculo.

Ao início da peça/aula dona Margarida entra em cena e interpela aos alunos/espectadores: “[...] Tem alguém aí chamado Messias? E Jesus? Tem alguém aí chamado Jesus? E Espírito Santo? Tem alguém aí chamado Espírito Santo? [...]” E já que estes não estão presentes ela pode dar a aula à sua maneira, mas claro, fazendo com que aquele momento fosse de aprendizado “proveitoso” e “prazeroso”.

Uma outra preocupação de dona Margarida em sala de aula é com o Diretor, que pelas ações da professora nos desvela ser, por parte dela, um inimigo, um entrave. Mas, apesar disso, o Diretor e a sala do Diretor são sempre recorridos quando dona Margarida se vê pequena demais para assegurar sua autoridade, utilizando este símbolo, então, como símbolo máximo da pena infligida aos alunos que a desrespeitarem. E o pior é que poucos voltaram de lá e se voltaram tiveram sérios problemas, segundo ela.

Nas primeiras cenas já podemos ver os questionamentos a respeito da formação do nosso povo. Ao dizer quais são suas intenções no decorrer de suas aulas, dona Margarida, de forma muito polida discorre a respeito da formação do cidadão nas questões humana e social. E na verborragia que se segue, abre duas abas ao lado do quadro negro onde podemos ler: “Coca-Cola” e “Barbie” como se estes fossem grandes exemplos e não apenas grandes vendedores de valores supérfluos.

Ainda neste discurso de formação atribuída à escola dona Margarida deixa bem claro que a função de qualquer educandário e dela, por conseguinte, como professora, é mostrar aos seus alunos a importância de SER. E enquanto desanda a falar esta palavrinha SER, escreve no quadro negro uma outra, muito mais empregada nos dias atuais: TER. Esta ação causa um certo riso na plateia, mas, muito maior, é a elucidação em cena de um dos grandes problemas do século: o consumo desenfreado e, na maioria das vezes, motivado pela mídia que transforma o cidadão comum em mero comprador de bens e vulgas qualidades de um ser humano introduzido num século de modernidades.

E neste viés de construção de um comprador e espectador de acontecimentos que se tornam alheios a este homem. Aquele que deveria se tornar um cidadão passa a admitir e concordar com erros e desmandos de várias outras vertentes da sociedade que passam a implicar em sua vida de forma negativa, na maioria das vezes, sem que ele os perceba. Caracterizados nas ações tiranas de dona Margarida, uma obcecada pelo poder.

Este cidadão depravado moral e socialmente, questionado na peça, não é mais capaz de nada. Nem de cantar um hino besta que figura entre os mais belos no hinário da escola. Neste ponto, temos outra crítica presente na peça e bastante relevante, em que diz respeito a boa parte dos cidadãos brasileiros não saber ao menos cantar o hino nacional. Sem falar, claro, naqueles que não sabem escrever seu próprio nome.

Em várias cenas temos representado no caderno de dona Margarida a Constituição do Brasil. Na maioria das cenas a sua utilização entra em conflito com o que está sendo dito pela professora, se apresentando então como uma crítica às leis do Brasil que, muitas vezes, não regem nada ou regem para poucos, indo na contra-mão do que está nas várias laudas da nossa constituição.

A sonoplastia de Marina Viana na maioria das vezes vem na complementação do humor presente no texto. O que não diminui a importância deste recurso. A presença dos diversos efeitos sonoros da peça afunila e direciona o raciocínio dos espectadores, seja para o acesso dos espectadores mais leigos ao humor subliminar recorrente no texto de Athayde ou até mesmo como um vetor que impeça que estes divaguem e percam qual é o principal questionamento da peça.

A iluminação, apesar de variar pouco, já é suficiente e tem grande importância na construção do espetáculo, principalmente da personagem dona Margarida. E nesse último aspecto devemos nos ater mais. Os diversos estados de dona Margarida se tornam mais compreensíveis ao público graças à iluminação, que dá o toque necessário à complementação das ações da atriz que interpreta a personagem-título.

O figurino é um dos pontos fortes e figura em pé de igualdade com a importância do cenário na representação. As roupas de dona Margarida são as de uma professora clássica que reside na memória de cada um de nós. Um blazer e saia escuros. Nos cabelos, um coque e uns óculos ao meio do nariz para que dona Margarida possa ler e olhar por cima destes para os alunos/espectadores. E apesar de clássico, o figurino não se torna pobre na construção de dona Margarida. Isso se confirma nas diversas quebras das ações da personagem que reverberam no seu figurino. Por exemplo, na cena em que dona Margarida se mostra de forma mais sexualizada, quase promíscua; e no final do espetáculo, quando dona Margarida está totalmente descontrolada.

Quando à atuação de Michelle Ferreira como a personagem título, dona Margarida, podemos destacar vários pontos positivos. Percebemos de forma bastante clara o duelo entre o interior de dona Margarida e os conflitos com o público de alunos.

Michelle transita muito bem entre os diversos estados de dona Margarida e principalmente evidencia que o desequilíbrio da personagem é sintoma de um organismo social em crise e não de uma professora defasada e atormentada pelos seus sentimentos.

A atriz se porta muito bem no jogo com o público enquanto seus alunos, desde a imprevisibilidade da reação do público às ações de dona Margarida até a maneira como este vai se portar durante o espetáculo desde a entrada no teatro. As pessoas que se levantam, conversam e se mexem toda hora nas cadeiras. Ora, são os alunos dela e estão atrapalhando a sua aula de Ciências e muito mais que isso, a sua importância na formação daqueles que estão ali. De maneira bem orquestrada ela encaixa tais ações com o público, que não estavam nas rubricas, com o texto previamente ensaiado.

Outra ação interessante da atriz Michelle Ferreira enquanto dona Margarida é colocar no texto, sem descontextualizá-lo de sua intenção primeira, durante o espetáculo, referências ao local em que ela está se apresentando o que contribui no efeito cômico da peça sem se tornar cansativo.

E na cena final em que dona Margarida é “vencida” e se apresenta sem poder nenhum logo depois de se mostrar uma mulher completamente desequilibrada, a sua quebra e a transição entre as duas situações de poder e submissão são muito bem evidenciadas no corpo da atriz e nas ações, nem sempre com a utilização da voz articulada.

Mas nem tudo são flores. Em contraponto a esta última cena da peça, a atriz peca em uma outra. É a hora do intervalo, a hora em que dona Margarida sai de cena e o que fica é a própria Michelle. Ela não consegue transmitir ao público com suas ações que dona Margarida não está mais lá e que ela, como atriz ou mesmo como aluno/público, está distribuindo as pipocas no “recreio”. Apesar de ter executado bem outras ações muitos mais complexas para o entendimento do público, nesta foi preciso que ela dissesse que dona Margarida foi para a sala dos professores e que os alunos poderiam conversar e fazer o que quisessem naqueles minutos de intervalo.

Em suma, apesar deste pequeno deslize de atuação, o espetáculo como um todo não exagera em suas ações nem dá margem para que nada se tornasse redutível. Bem dirigido por Camilo Lélis e muito bem encenado por Michelle Ferreira, resguardando as devidas proporções, este espetáculo pouco perde para a primeira montagem que ocorreu há mais ou menos 25 anos atrás tendo como a intérprete da personagem-título Marília Pêra. Com a sua originalidade sem mutilar e descaracterizar o texto, e uma grande harmonia entre todos os aspectos que compõem qualquer espetáculo, “Apareceu a Margarida” do grupo Flores de Jorge é uma excelente pedida.



Créditos das fotos: Daniel Proztner

Referência
PAVIS, Patrice. A análise dos Espetáculos. São Paulo: Perspectiva, 2003.

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