11 de fevereiro de 2008

Entre a vida e a cena: relato de um trabalho de campo sobre a prostituição.

Entre a vida e a cena: Relato de um trabalho de campo sobre a prostituição
Michelle Cristina Alves Silva[1]


Quando criança minha avó vendia roupas usadas e eu a acompanhava em um local na cidade de Uberaba, Minas Gerais chamado Gogó da Ema. Aos poucos, pude entender tratar-se de um prostíbulo onde escandalosas mulheres amontoavam-se junto às roupas. Acredito que esse foi o meu ponto de partida no universo da prostituição. Ë por isso que, de certo modo, creio que nossas escolhas artísticas se baseiam sempre em fatos que nos marcaram profundamente, principalmente na infância, e que transpomos para o universo da arte.
Muito tempo depois, estava na graduação do curso de Artes Cênicas da Escola de Belas Artes da UFMG quando adentrei-me no sexto período na prática de montagem do curso de bacharelado ministrada pelo professor Luiz Carlos Garrocho. O foco da pesquisa eram os seres marginais da região do baixo centro de Belo Horizonte, dentre estes, as prostitutas. No trabalho de campo, por várias vezes visitei hotéis de prostituição da rua Guaicurus no centro da cidade onde pude gravar vários relatos. O resultado desse processo criativo culminou com a apresentação do trabalho “Fudidos Intervenção Cênica no espaço urbano” em agosto de 2004 no quarteirão fechado da rua Guaicurus. A direção foi do professor Luiz Carlos Garrocho.
Esse trabalho fomentou o desejo de uma pesquisa mais aprofundada sobre a prostituta. Alguns parceiros que têm uma pesquisa dentro desse universo como Lúcio Barros, sociólogo, Francilins, fotógrafo e antropólogo além de Dos Anjos, presidente da Associação das Profissionais do Sexo de Belo Horizonte[2], permaneceram após a finalização do processo “Fudidos”. Isso tudo impulsionou a elaboração de um projeto para leis de incentivo onde o foco era histórias de vida das prostitutas ou profissionais do sexo, como gostam de serem chamadas; e que resultaria em uma montagem cênica. Em 2005, o projeto foi aprovado na Lei Municipal de Incentivo à cultura de Belo Horizonte.
Trazer esse tema à tona foi sempre um desafio. A sociedade de Belo Horizonte, por mais que saiba de todos os hotéis existentes na rua Guaicurus, prefere ignorar o uso dessas casas antigas. É fato também que a Guaicurus é para a grande maioria das pessoas uma região perigosa, conhecida também pelo tráfico de drogas e por ser onde muitos delinqüentes praticam roubos e assaltos.
Antes de partir para o processo de criação, passei novamente pelo trabalho in loco. Visitas em hotéis, casas de strip-tease e cines pornôs foram realizadas por toda a equipe de montagem: direção, dramaturgia, elenco, cenógrafo e iluminador. Todo esse trabalho tinha o intuito de levar material para a sala de ensaio. Dessa pesquisa, para além das fitas gravadas, ficou em cada um de nós as impressões de cheiros, cores, corpos como mercadorias à venda. Um fato que chamou a atenção de todos foi a quantidade considerável de homens pelos corredores, em pleno horário comercial. A sensação é de que todos os homens que trabalham no centro da cidade freqüentam esses locais.
De acordo com o texto “Mariposas que trabalham”[3], do sociólogo Lúcio Barros, Laure Adler (1991), competente historiadora francesa, busca na obra de Félix Regnaut, de 1906, quatro tipos de clientela:
- os libertinos, que gostam de novidades e cujos desejos exigem excitações que apenas as mulheres experientes podem oferecer;
- os tímidos e os iniciantes, que não têm coragem ainda de cortejar as mulheres;
- os desfavorecidos pela natureza;
- os homens casados com mulheres doentes que não podem recebê-los e principalmente a multidão daqueles que não possuem os meios para contrair matrimônio ou manter uma amante (Adler, 1991: 98 e 99).
Aos quatro segmentos, a autora acrescenta um quinto: "o grande número de homens casados cujas esposas não são doentes, mas com as quais o ato carnal tem como finalidade apenas a procriação, e como modo de execução, a rapidez. Sem esquecer aquelas mulheres que impõem ao cônjuge a abstinência sexual" (Adler, 1991:99).
Pelas visitas das quais participei, observo que existe principalmente uma classe não abordada pela pesquisadora: um grande número de curiosos que se amontoam nas portas dos quartos, ou seja, freqüentadores de hotéis que não fazem programa com as prostitutas, mas apenas observam, perguntam sobre os preços de alguns serviços para algumas mulheres e vão embora.
Esse processo de ir e vir aos hotéis durou um período de dez meses da montagem, sendo que, nos últimos três meses que antecederam à estréia do espetáculo, houve uma diminuição das visitas devido à quantidade de ensaios para finalização do espetáculo.
O trabalho foi realizado em processo colaborativo, ou seja, a dramaturgia foi construída em cena, com as contribuições importantíssimas dos relatos de todas as mulheres com quem tivemos contato e das improvisações de nós atores.
É importante ressaltar que desde o princípio do processo, sempre defrontamos com uma questão: O que queremos dizer do universo da prostituição? Qual o recorte que queremos fazer dentro de um universo tão amplo que aborda sexo, relações entre comércio e mercadorias humanas expostas. Quando finalmente optamos pelo enfoque nas histórias de vida de prostitutas o grande perigo era cair no estereótipo, mulheres que fazem sexo com trinta, quarenta, cinqüenta homens por dia... não, não era disso que queríamos falar, ou melhor, não apenas disso. Cabia a nós desvendar-mos o outro lado, da prostituta não enquanto vítima da sociedade, mas da mulher, filha, mãe e esposa que possuía um passado, um presente e um futuro muitas vezes nem tão promissor, como a maioria das pessoas almeja:
Violeta — Ah, foi um patrão meu que levou. Era crente, lá do Alto Paraná. Ele levou eu pra conhecer a zona. Daí eu fui. Mas eu não fiquei. Daí eu fiquei uns tempos e fui trabalhar. Entendeu? E eu tinha... (falas confusas). Não tinha jeito, pra quem cuidou deles e eu fui trabalhar... eu dormia... (falas confusas). Daí em Curitiba eu vi que não tinha jeito, daí eu peguei e vim pra cá...
Mateus — Mas isso no Paraná...
Violeta — Em Londrina
Mateus — Era pastor você falou que te levou pra zona?
Violeta — é...
Mateus — te levou como?
Luci — Pra conhecer, pra fazer um programa com ele?
Violeta — Ele me levou pra trabalhar mesmo. Eu trabalhava em um restaurante... daí eu fiquei lá, mas eu tinha que beber demais, eu tava inchando, tava inchando aí eu vim pra cá. Não tinha que beber, não era boate, daí eu vim pra cá. Mas eu vim pra cá velha, uns 40 anos, já tô com 60...[4]

O que mais impressionou a todos os envolvidos nessa montagem foram os relatos de como as mulheres iniciaram no universo da prostituição. Muitas vezes as histórias reais beiravam ao realismo fantástico.[5]
Eu vim sozinha, com a minha decisão. No começo eu não sabia que cada coisa tinha um preço. Veio um homem e fez de um tudo comigo. E depois ele ainda foi na menina ao lado e falou “orienta a menina lá, ela fez tudo comigo por cinco reais”[6]
Após ouvirmos todos os relatos, partimos para decupagem das fitas gravadas. Dentro do processo colaborativo, o trabalho, de certa forma, torna-se mais minucioso já que é necessário voltar à cena e rever a dramaturgia inúmeras vezes, principalmente nesse caso, onde o artístico se baseia em uma realidade tão crua.
A dramaturgia caminhava para um processo que não agradava à equipe, mas, mesmo assim, não conseguíamos mudar a direção. Percebeu-se que lidar com o real do sexo, com apenas duas atrizes e um ator tendo que alternarem a cena entre várias prostitutas e inúmeros clientes não era um caminho interessante. É nesse momento que após várias discussões optamos por manter partes importantes do depoimento transpondo a dramaturgia para um tempo não-real: um tempo de interdição, onde hotéis foram fechados e em um desses com o nome fictício de “Hotel Açucenas”, permaneceram seis mulheres que recorrem às suas histórias singulares afim de reconstruírem suas vidas e reabrirem o hotel. Logo no início do espetáculo, o público se depara com o hotel interditado e um homem que adentra esse espaço, em busca de “vestígios” de vida. É essa personagem masculina que situa o espectador no tempo-espaço interditado dos hotéis.
Para preservar a identidade das mulheres que entrevistamos, fizemos a escolha na dramaturgia de que todas as personagens tivessem nomes de flores: Violeta, Dália, Jasmim, Orquídea, Margarida e Begônia constituem o mosaico de comportamentos, anseios e frustrações de cada prostituta com que tivemos contato ao mesmo tempo em que o personagem masculino “Estranho” é o nosso olhar nesses locais: o olhar de um estrangeiro, em busca de segredos, denúncias e histórias de vida.
O projeto aprovado na lei intitulado “Parto” tinha como proposta, além da montagem artística, duas oficinas de teatro destinadas à Associação das Profissionais do Sexo de Belo Horizonte e para as mulheres que são vítimas de maus tratos dos maridos atendidas pelo Centro Benvinda, entidade municipal. Outro desejo era aproximar todas as mulheres que cederam seus relatos e todas as prostitutas de hotéis e praças da cidade do nosso trabalho, sensibilizar para o fato de que o espetáculo estava sendo feito não apenas para deleite de intelectuais e classe artística, mas, principalmente, para elas.
Talvez a grande decepção desse projeto foi o quórum mínimo de profissionais que foram assistir à peça, ainda que tínhamos feito uma campanha forte em todos os hotéis sobre o espetáculo anunciando ao acesso gratuito para as mulheres. Por um lado, isso mostra o descaso e a total desarticulação de uma “classe” que tenta se politizar e, principalmente, regulamentar a profissão. Por outro, nas três semanas de temporada do espetáculo, praticamente todos os setenta lugares destinados ao público foram preenchidos todos os dias, dentre esses, espectadores como jesuítas e funcionárias da Pastoral da mulher que realizam um trabalho oposto à da Associação das Profissionais: as últimas querem melhores condições de trabalho e as primeiras pregam a saída da mulher dos hotéis para uma nova vida.
O que podemos dizer é que o nosso trabalho se situa nesse espaço de “conflito de interesses”: queremos colocar a mulher como sujeito de suas escolhas, ainda que estas escolhas não sejam as ideais. E, principalmente, conscientizar que o mais importante é o caminho da luta por dignidade, para que não precise usar outros nomes, utilizarem disfarces como perucas e criarem outras vidas paralelas.
Por esse viés, o espetáculo propõe esse debate, convida o espectador a entrar sutilmente na vida de cada uma das personagens com nomes de flores, a retirar a “máscara” de cada prostituta e reconhecer o ser humano sensível, inteligente, egoísta, que sofra e que realiza suas escolhas de vida.

REFERÊNCIAS:

BARROS Lúcio. MARIPOSAS QUE TRABALHAM. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7356. Acesso em 06 de junho de 2007.

Entrevistas gravadas nos hotéis com as profissionais do sexo entre setembro de 2006 a abril de 2007.
[1] Atriz, professora e produtora cultural. Licenciada em Artes Cênicas pela Universidade Federal de Minas Gerais UFMG. Pós-graduada em Produção e Crítica Cultural pela PUC Minas.
[2] A Associação das Profissionais do Sexo de Belo Horizonte é constituída pelas prostitutas dos hotéis da Guaicurus e daquelas que trabalham em outras regiões como na Praça Rio Branco, no Centro de Belo Horizonte. A Associação, além da distribuição de preservativos e de colaborar em campanhas de prevenção das doenças sexualmente transmissíveis – DST, luta também por melhores condições de trabalho para as prostitutas e por regulamentar a profissão. Atualmente, a Associação se reúne semanalmente no Centro Cultural UFMG e tem como presidente Dos Anjos.
[3] Lúcio Barros foi importante parceiro na pesquisa do universo da prostituição. Sociólogo, entrou em contato com prostitutas através de uma pesquisa com a Polícia Civil. Para maiores informações, consultar o texto “Mariposas que trabalham” disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7356.
[4] Esse trecho trata-se de um relato de uma prostituta com quem encontramos várias vezes durante o processo de montagem. O nome é fictício para preservar sua identidade. Violeta é uma das personagens do espetáculo Hotel Açucenas.
[5] Gênero literário, onde podemos citar como expoente o escritor Gabriel García Márquez.
[6] Relato de Begônia. Conforme já exposto anteriormente, o nome real é preservado. Aqui, mencionamos mais um nome de uma personagem do espetáculo “Hotel Açucenas”.

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